Os Punches “De Uso do Bar”

Já disse muito, nos últimos posts, sobre o punch. Mencionei que ele é o “pai” do coquetel, do drink individual; mas como essa transição aconteceu?

Gravura em metal do Sr. James Ashley, representado como um homem de nariz longo, vestido à moda da época, com a mão por dentro da casaca tal qual Napoleão.

Embora esse fenômeno não tenha sido isolado, um ex-comerciante de queijos chamado James Ashley (retratado à esquerda) se destacou por abrir em 1731 um estabelecimento que vendia punch em pequenas quantidades (até mesmo direto no copo!) a preços bem abaixo do mercado. Sua “London Coffee-House and Punch-House” vivia lotada, com fregueses tão ilustres quando Benjamin Franklin.

Como diversos panfletos de propagando de Ashley sobreviveram, e essa maneira de preparar era descrita por ele e por aqueles que frequentavam seu estabelecimento como inovadora, podemos deduzir que não havia muitos fazendo o que ele fazia.

E digo aqui “ele fazia” porque os registros da operação da casa são em seu nome. Mas sabemos que o ofício de misturar bebidas era uma tarefa historicamente feminina, então mesmo que a receita fosse de Ashley, sua “chefe de bar” era a Srta. Gaywood, e as outras pessoas responsáveis por preparar as bebidas também eram mulheres.

Daí pra frente, desde o início do século XIX encontramos relatos de festas e eventos que descrevem o punch sendo preparado “não mais em grandes bowls, mas em copos e taças por aqueles que irão bebê-lo, enquanto mais atenção era dada à comida” como registrou Sir John Sinclair.

Em 1892, William Schmidt em seu livro “The Flowing Bowl, When and What to Drink” chama as receitas de punches individuais de “punches de uso do bar”, ou seja, preparados pelo bartender de forma individual conforme o pedido do cliente.

O Jeito Francês de Fazer Punch É Italiano!

Quando falamos da história do punch, e da coquetelaria num geral, estamos na verdade falando da história dessas bebidas na perspectiva da língua inglesa. O foco histórico tende a ser na Inglaterra e Estados Unidos da América, simplesmente porque esses foram os países que ditaram ou iniciaram os movimentos que geraram essas bebidas. Isso não quer dizer que outros países não tenham suas próprias histórias e peculiaridades na forma de beber punch.

Na França, por exemplo, o punch foi adotado apenas no fim do século XVIII, embora os franceses já conhecessem essa bebida inglesa. Lá, foi rapidamente modificado para ser bebido com champagne ou outros estilos de espumante, tanto no lugar do ingrediente “fraco” que geralmente associados à água ou chá, quanto como substituto do destilado usual.

O Punch Romaine, ou “punch romano”, vem desse punch de espumante. Os ingleses o creditam aos franceses, que por sua vez o creditam aos italianos vendedores de sherbet de Paris (daí o nome). Quem quer o tenha criado, fato é que ele se tornou popular em Paris.

Na Cidade Luz, os limonadiers (vendedores de limonada) italianos já faziam sherbet batido com gelo, acrescido de merengue italiano para aprimorar sua textura. Adicione a isso um pouco de brandy ou cognac e espumante, e voilá! Temos um delicioso híbrido entre o sherbet e o punch, o Punch à la Romaine.

Como é o “Punch Romaine”?

Enquanto coquetéis clássicos são lembrados por sua facilidade de reprodução, o Punch Romaine é famoso por ser quase impossível de se manter em uma carta de bar.

Isso porquê dois dos três ingredientes (granita, merengue italiano, espumante) desse drink são de difícil conservação:

O granita (sherbet de limão siciliano, destilado, gelo) precisa ser mantido em uma temperatura muito precisa: se ficar gelado demais, congela por completo e impossibita que o coquetel seja preparado; se não ficar gelado o suficiente, a textura característica não é alcançada.

O merengue italiano “desanda” fácil se passar por mudanças de temperatura constantes, ou se esquentar demais.

Mas então por que esse coquetel foi um marco na história da coquetelaria? Bem, primeiramente, ele é muito gostoso e único. Se preparado corretamente, a textura se assemelha a de uma nuvem muito gelada e cremosa, cítrica e adocicada.

Mas muito do seu apelo no imaginário moderno vem de uma tragédia: o Punch Romaine talvez tenha sido a última refeição dos tripulantes da primeira classe do Titanic.

O Punch e o Navio

Em 1808, o Punch à la Romaine já era famoso o bastante para ter sido registrado em livros de culinária suecos como uma bebida “típica” de Paris; em 1810, diversos cafés francêses tinham alguma variação da receita. Como bons ditadores de moda que eram, logo o costume parisiense foi exportado para outras capitais, ao ponto que em 1813 a receita já fazia sucesso na Inglaterra.

Quando o “punch romano” chegou às colônias (ou ao menos a Nova Iorque), já não se pode dizer que fosse a última moda na Europa, mas a primeira metade do século registrou algumas centenas de variações da receita em diversos lugares no globo.

Um século depois, em 1912, esta bebida adquiriu um viés mais requintado ao ser incorporado como um “palate cleanser” para os integrantes a bordo da primeira classe do Titanic. Ele foi consumido entre refeições ao longo do jantar de 14 de abril, o fatídico dia em que o navio se chocou contra um iceberg.

Foto do menu da primeira classe do Titanic, datando de 14 de abril de 1912. São listados 10 pratos, em ordem, com o punch romaine como sexto prato, entre os pratos principais mais pesados e cheios de carne.

Como uma bebida que é quase um meio-termo entre coquetel e sobremesa, com teor alcóolico mediano e muita textura e acidez, é compreensível que fosse usado para limpar o paladar entre pratos pesados, especialmente com muita carne.

A essa altura, o punch de maneira geral já saíra de moda. O punch romaine, embora considerado demodé, ainda era ocasionalmente reimaginado por grandes chefs. Ao invés de bebido como um coquetel, era utilizado como sobremesa, ou para limpar o paladar antes ou durante uma refeição.

Caso tenha ficado curioso para provar esse punch tão marcante, acompanhe o próximo post, onde apresentarei algumas variações da receita e apresentarei a versão que testei. Saúde!

Fontes: Cocktail Kingdom Library. Disponível em: <https://library.cocktailkingdom.com/index.html>. Acesso em: 22 ago. 2025. ; DOS, C. desastre marítimo ocorrido entre 14 e 15 de abril de 1912. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Naufr%C3%A1gio_do_RMS_Titanic>. ; SCHMIDT, W. The Flowing Bowl – When and What to Drink. [s.l.] Read Books Ltd, 2017. ;WONDRICH, D. Punch. [s.l.] Penguin, 2010.

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