À frente da imagem, vê-se diversas xícaras de chá de porcelana, em diferentes modelos. Um pouco atrás, à esquerda, um grande bowl de punch de vidro lapidado, cheio de punch e com uma concha de servir prateada dentro. Toda a iluminação da foto é em tons de vermelho.

Como bebíamos antes do punch?

Já imaginou chegar no bar com um grupo de amigos, e ter que decidir uma única bebida para compartilharem? O coquetel individual, assim como a garrafa de cerveja ou vinho, é tão usual que é difícil conceber que mesmo recentemente essa não era uma opção.

Isso porque até meados do século XVII, vendedores não podiam manter uma variedade de cervejas ou vinhos; bebidas mistas já existiam, mas feitas a partir de misturas desses fermentados com ervas, leite, ovos, e o que houvesse disponível. Frutas frescas e gelo eram luxos raros e reservados para outras formas de consumo. Essas misturas eram preparadas e servidas em tavernas e “alehouses” , geralmente por mulheres, filhas e esposas dos donos desses pequenos estabelecimentos, que eram responsáveis por chamar a freguesia e mantê-la entretida.

Na época, a maior parte da Europa não produzia destilados, ou os fazia em pequena quantidade e com baixa qualidade. Na Inglaterra, bebidas destiladas eram reservadas para fins medicinais, consideradas excessivamente fortes e desagradáveis para beber puras, e a importação quase não ocorria devido à altas taxas impostas pelo governo, ou mesmo por xenofobia (destilados de grãos, por exemplo, eram associados aos irlandeses e escoceses, com quem a Inglaterra não mantinha boas relações).

Nasce o Punch:

A Midnight Conversation, por William Hoghart

O primeiro registro da palavra “punch” para se referir a uma bebida data de 1632, em uma carta entre membros da Companhia das Índias Orientais, a grande empresa de comércio inglesa, estacionados na Índia; o contexto da correspondência indica que a bebida já era bem difundida entre os ingleses vivendo na região.

Existem algumas teorias distintas para essa palavra: a mais difundida é que o nome deriva da palavra Hindi para “cinco” (pãnch), que seria o número de ingredientes: Destilado (geralmente arrack), suco de cítricos, açúcar, especiarias, e água.

Outra teoria, apoiada pelo mixologista e historiador David Wondrich, aponta que “punch” era uma gíria comum para designar qualquer coisa “baixa e robusta”, como os bowls em que o punch era servido – daí, tudo servido de dentro de um “punch” teria o mesmo nome.

O criador do punch permanece um mistério, mas provavelmente foi um marinheiro da Companhia das Índias. Já era de conhecimento dos ingleses que as frutas cítricas ajudavam a prevenir o escorbuto, doença causada pela deficiência de Vitamina C e comum em alto mar; daí os cítricos.

O consumo de álcool também era habitual nos navios, pois a água transportada para consumo estragava rapidamente, enquanto as bebidas alcóolicas duravam mais. Conforme transportavam destilados em longas viagens, os marinheiros perceberam que estes tinham maior durabilidade e ocupavam menos espaço que a cerveja e vinho usuais; daí o destilado. Não atrapalhou em nada que o trajeto tinha efeito positivo no sabor, pois as bebidas absorviam características das madeiras em que eram armazenadas.

Os outros ingredientes (água, açúcar, condimentos) tornavam a bebida mais agradável e calórica, além de serem mais acessíveis nessas viagens do que seriam na Inglaterra.

A ascensão econômica dos destilados:

Em 1676, após um longo período de instabilidade política e econômica, os destilados chegaram com maior força à Inglaterra, feitos de restos da fermentação da cerveja, e vinho e açúcar estragados que eram destilados com anis e zimbro para disfarçar o sabor. Eram vendidos a preços baixos nos estabelecimentos que tinham permissão para comercializar cerveja – uma alternativa interessante para pequenos comerciantes, visto que a permissão para vender vinho custava caro – as taxações sobre essas bebidas só vieram mais tarde. Também começaram a chegar aos mercados os brandy franceses, destilados de uva de maior qualidade porém muito caros.

Pouco depois, em 1680, as coffee houses começaram a fazer sucesso na Europa, vendendo café e punch. Os motivos que contribuíram para a bebida entrar nesses estabelecimentos são incertos, mas contribuíram fatores como o nacionalismo: a Marinha Inglesa era amplamente respeitada pelos patriotas; e também a proibição, pela Coroa Inglesa, de importar vinhos franceses, que até o momento era a bebida preferida dos nobres e burgueses.

Os frequentadores dessas coffee houses, jovens aristocratas progressistas e grandes comerciantes, foram os responsáveis por elevar o punch de uma bebida de marinheiro para algo requintado.
Em paralelo ao que ocorria na Inglaterra, os marinheiros levavam o hábito do punch às colônias do “Novo Mundo”, onde ele floreceu rapidamente devido à dificuldade de produção das bebidas mais habituais aos colonos.

A Era de Ouro:

Chegou então a Era do Punch! Os nobres e comerciantes que frequentavam as coffee houses passaram a se organizar de acordo com suas afinidades políticas e abrir clubes, em que se encontravam para discutir política, fazer negócios, e beber punch.

A bebida também servia de contraponto social; enquanto os ricos e aristocratas bebiam punch, a população geral passava rapidamente a beber gin, um destilado importado ou de baixa produção local, barato, e proveniente daquelas primeiras garrafas de bebida destilada que chegaram há pouco no país.

Houve inclusive tentativas de proibir a venda de gin, motivadas em grande parte por movimentos conservadores; os mesmos aristocratas e intelectuais que bebiam punch – não mais feito com o arrack, mas com o brandy francês ou rum proveniente das colônias – afirmavam que o gin era responsável por incitar a balbúrdia e o pecado. Diferente do punch, que segundo eles não apresentava os mesmos riscos, apesar dos diversos registros que sobreviveram para provar o contrário.

Ao longo dos anos, a população aprendeu a reproduzir as receitas de punch com gin, muito mais barato, e a bebida finalmente chegou a todas as camadas sociais inglesas, onde perdurou até meados do século XIX.

O Início do Fim:

No fim do século XVIII, com a chegada da Revolução Industrial e crescimento da burguesia, os hábitos de consumo mudaram. Já não era possível para um grupo de pessoas passar o dia inteiro frente a um grande recipiente de bebida, gastando horas e horas para consumi-la. Relatos desde 1810 já se referem ao punch como uma bebida “ultrapassada”, embora ainda tivesse seus defensores.

Conforme as técnicas de destilação melhoraram, já não era mais necessário disfarçar o sabor das bebidas com tantos ingredientes, e o foco mudou para a degustação de bebidas puras ou curtas, assim como vinhos fortificados, licores, e outros derivados produzidos com os destilados.

Enquanto isso, nas colônias inglesas os métodos para preparar as próprias bebidas alcóolicas – fermentadas e destiladas – foram adotados, e o punch comunal foi aos poucos substituído por novas formas de beber.

A ascensão de ideais individualistas também reduziu o interesse das pessoas em beber de forma comunal, o que eventualmente abriria espaço para os “punches de uso do bar”, a ponte entre o antigo punch e o coquetel moderno. Mas isso é história para outro dia…

O punch do século XX:

O punch sobreviveu aos trancos e barrancos, majoritariamente fora de estabelecimentos comerciais, como uma opção de bebida em eventos e feriados.

Comercial vintage de punch da marca Seven-Up

Prevalente em grande parte nos Estados Unidos, esse punch moderno tem pouca relação com as receitas de outrora: comprado pronto, de marcas industriais que oferecem variações com ou sem álcool, por vezes desidratadas (como nosso “suco tang”). Sem especificações para determinar o que é ou não chamado de punch, o que permaneceu imutável foi o conceito de partilha; todo punch é uma bebida para uma ocasião grupal, para beber devagar e com muitas pessoas.

Ou assim foi até o início do século XXI, quando a nova era da mixologia resgatou a história da coquetelaria e começou a questionar se há espaço para o punch voltar às nossas vidas cotidianas.

No próximo post, falarei sobre métodos de preparo, receitas que sobreviveram ao teste do tempo, e o lugar do punch nos bares modernos.

Saúde!

Fontes: STEWART, A. The drunken botanist : the plants that create the world’s great drinks. Chapel Hill, N.C.: Algonquin Books Of Chapel Hill, 2013. ; WIKIPEDIA CONTRIBUTORS. Punch (drink). ; WONDRICH, D. Punch. [s.l.] Penguin, 2010.

1 comentário em “Punch: a pré-história do coquetel”

  1. Adorei o Regitro histórico. Pena não ser mais uma bebida comum e servida socialmente. Nunca tive a oportunidade de experimentar!

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