Em uma bandeja de prata, xícaras de chá cheias de gelo e punch e decoradas com fatias de limão. Ao fundo, à direita, é possível ver parte de um bowl de punch de vido lapidado. Toda a iluminação da cena é em tons de vermelho.

Punch não é coquetel!

Vamos começar por uma diferença essencial: punch não é coquetel.

As regras de harmonização, equilíbrio, e objetivos que se aplicam a um, nem sempre se aplicam ao outro. Punch é investimento: de tempo, e de dinheiro. E de amizades, se você quiser presentear alguém com alguns litros de boa bebida.

Um coquetel testado que não agrada pode ser consumido rapidamente, ou mesmo descartado sem (muito) drama. Um bowl de punch, por outro lado, envolve tempo espremendo suco de frutas, preparando o gelo (caso esse vá ser usado), fazendo oleo saccharum ou sherbet, e muitos reais em bebidas.

Como toda arte, apenas a prática pode levar à perfeição, mas vários antes de nós praticaram o bastante para nos dar um norte.

Sempre que possível, devemos evitar reinventar a roda.

Um Verso para Recordar

Diz a teoria, registrada ao longo dos dois séculos em que o punch reinou – você pode ler sobre aqui – e corroborada por Jerry Thomas – o pai da coquetelaria – que um bom punch deve ser forte, adocicado, e misturado de forma que nenhum ingrediente se sobreponha aos demais. 

Se você já pesquisou um pouco, provavelmente se deparou com uma rima simples, frequentemente usada como receita:

1 of sour, 2 of sweet, 3 of strong, 4 of weak

( 1 de cítrico, 2 de doce, 3 de forte, 4 de fraco)

Cada número da receita corresponde a uma parte do volume total, logo 1 de ácido e 2 de doce indica que deve-se usar o dobro de açúcar que de limão. Essa é a variação mais famosa da rima, embora outras existam, com medidas diferentes.

David Wondrich em seu livro “Punch!”, chegou na rima que gerou os punches mais equilibrados, de sua própria autoria:

1 of sour, 2 of sweet, 4 of strong, 6 of weak

(1 de ácido, 2 de doce, 4 de forte, 6 de fraco)

Mas essa receita aparentemente simples carrega alguns segredos!
Por isso, vamos pensar no punch por partes:

O Forte

O que hoje pensamos como uma bebida forte, como um Dry Martini ou uma Caipirinha, não chega perto do que o paladar do século XVII estava habituado.

Os bebedores de punch eram, até o momento, bebedores de cerveja (e vinho, para os nobres ou ricos); mesmo estes fermentados provavelmente não chegavam ao limite do teor alcóolico que conseguimos alcançar hoje.

Isso porquê as técnicas de fermentação eram menos precisas, e as culturas (o fermento) usadas também não eram tão eficientes em converter o açúcar em álcool.

Logo, o “forte” do punch devia ser um teor alcóolico próximo de um vinho forte, ou um jerez suave.

Mas se consideramos a rima, 3 partes de 10 para o forte não trará o percentual alcóolico que procuramos; isso porque o teor alcóolico dos destilados também mudou.

Hoje, o comum é encontrarmos destilados com aproximadamente 40% de álcool por volume (ABV). No início da destilação, não existiam formas exatas de medir esse percentual. O primeiro hidrômetro foi criado apenas em 1725, por John Clarke, e seu uso só se tornou oficial a partir de 1787, já no final da “era de ouro” do punch.

Nessa época, foi determinado na Inglaterra que os destilados deveriam ser vendidos com um teor alcóolico de 50%, mas esse teor era medido por peso, enquanto hoje medimos por volume. Isso significa que o ABV das bebidas na época se aproximava de 57%!

Por isso, para reproduzir uma receita da época de forma correta, precisamos usar mais destilado e menos água.

Outro fator importante a considerar é o sabor: o instrumento usado para destilação na época era o alambique, que resulta em destilados de sabor mais denso, com mais personalidade. Muitos eram descritos como “funky”, com notas marcantes de fruta fermentada, carne curada, ésteres de maneira geral. Essas notas são menos aparentes na destilação por coluna, mais comum hoje.

Curiosidade!

A cachaça, destilado de cana nacional do Brasil, costuma ter muitas das notas descritas como “funky”!
Isso significa que ela tem muito potencial para ser usada em punches, basta experimentar!

Ou seja, para produzir um bom punch, devemos procurar destilados com muita personalidade!

O costume de envelhecer destilados em barril estava apenas começando; o brandy francês e até o conhaque muito raramente eram envelhecidos por mais que 12 a 18 meses. Um breve envelhecimento é mais que suficiente para o punch.

Opções de Destilados:

O arrack (não o estilo árabe mais comum hoje, saborizado com anis, mas destilados asiáticos de arroz e palma) foi o primeiro, mas no Brasil é bem difícil de achar; brandy e conhaque vieram em seguida, mas devido aos preços em que os encontramos aqui, você talvez queira priorizar receitas que usam outras bebidas.

O rum era usado em estilos um pouco mais pesados e distintos do que estamos habituados a encontrar hoje. Ele deve ter o perfil “funky” mencionado, ou ser misturado/substituído por cachaça. Caso encontre, runs jamaicanos encaixam bem.

O gin tende a ser no estilo holandês (genever), ou para receitas do final da era do punch, o estilo Old Tom. Claro, um bom London Dry ainda rende deliciosos punches, mas vai exigir menos especiarias e temperaturas mais baixas.

Para um punch de uísque, dê preferência por uma bebida mais jovem, maltada, e com teor alcóolico alto; alguns uísques de centeio (rye) funcionam aqui. Para bourbon, procure rótulos com notas de especiarias ou certa picância.

O Ácido

As receitas clássicas de punch raramente especificam qual tipo de limão usar. Na verdade, a diferenciação entre o que hoje chamamos de limão taiti e limão siciliano (lime e lemon, respectivamente) só surgiu a partir da segunda metade do século XVII, para diferir entre os limões nativos da Europa (siciliano) e os importados das colônias (taiti).

Seja qual for que você decida usar, é importante que estejam bem ácidos, e com uma boa quantidade de casca, visto que esta pode produzir oleo saccharum (um xarope de casca de cítricos muito saboroso e usado com frequência em punches).

Laranjas também são uma opção, desde que em variedades azedas, como a laranja azeda de Sevilla. Cítricos muito doces conferem ao punch uma sensação “aguada” e devem ser evitados.

Algumas poucas receitas utilizam vinagre, verjus, ou até tamarindo para complementar a acidez, mas isso vinha mais da dificuldade de encontrar frutas frescas que por preferências de sabor. De toda forma, vale a experimentação.

Bares modernos usam até mesmo ácidos isolados, como málico, cítrico, lático, etc. Estes não devem ser usados sozinhos, pois não adicionam sabor, mas podem complementar ou equilibrar outros ingredientes ácidos.

O Doce

Foto de um "sugarloaf" ou "pão de açúcar", um bloco longo de açúcar refinado com formato de cone. Foto por Petr Adam Dohnálek.

Na era de ouro dos punches, o açúcar era vendido em “bolos” (chamados de pão de açúcar), blocos densos nos quais as cascas dos cítricos eram esfregadas para absorver seus óleos.

Esta técnica não é mais possível com os açúcares modernos, por serem muito delicados. Talvez funcione com rapadura, mas eu nunca testei nem encontrei quem tenha testado.

Para reproduzir o sabor dos punches clássicos, dê preferência por açúcar demerara ou mascavo, mas outros com mais personalidade (açúcar de palma, de tâmara, etc) podem adicionar complexidade de formas muito interessantes. Vale lembrar que você talvez precise brincar um pouco com as quantidades para chegar ao nível de dulçor correto.

Outros ingredientes, como licores, crèmes, etc, também possuem bastante açúcar; se sua receita leva algum destes, ajuste as quantidades de acordo.

Embora nosso açúcar seja delicado demais para raspar os cítricos, é possível fazer um oleo saccharum. Para isso, retire as cascas das frutas com um descascador (retire o excesso da parte interna branca) e misture em uma quantidade igual (em peso) de açúcar. Deixe descansar por algumas horas. O resultado é um xarope denso e muito aromático.

Misture o oleo saccharum ao suco dos limões usados, e você tem um sherbet.

Caso opte por fazer um xarope – o que facilita bastante a diluição e incorporação dos ingredientes – lembre-se de contabilizar a água utilizada, e reduzir a quantidade do “fraco” que usaria.

Qualquer seja a escolha, lembre que nossos paladares habituados a refrigerante e leite condensado certamente não se comparam ao paladar de pessoas do século XVII. Além do que, o punch é uma bebida de volume. Você consegue beber 1, 2, até 3 batidas com leite condensado, mas provavelmente não conseguiria tomar litros. O dulçor do punch deve ser presente, porém não enjoativo.

O Fraco (e o Gelo)

Algo importante a lembrar, para nossos paladares habituados a coquetéis e a maravilha do freezer moderno: o gelo não era tão acessível quanto hoje, e nem tão desejado.

Por ser uma bebida mais delicada e consumida em grandes quantidades, é ideal que o punch não seja tão gelado. A depender de como será servido, isso também pode interferir na quantidade do elemento “fraco” a ser adicionado. Além disso, existem diversas receitas de punch feitas para servir quentes, quando a diluição será unicamente da água adicionada.

Embora tenha citado aqui água e chá como elementos diluentes, também podemos preparar nosso punch com água gaseificada, espumante, cidra, entre outras bebidas diversas. Caso optemos por algo com mais sabor do que a água, o gelo se torna mais importante – não apenas pela sua temperatura, mas pela diluição.

Algumas opções para servir um punch gelado:

  • Diluir a bebida, engarrafar, e manter as garrafas submersas em gelo prontas para servir;
  • Colocar o punch diluído em um bowl menor, dentro de outro maior, e encher o espaço entre os dois de gelo e sal;
  • Preparar um grande bloco de gelo (com ao menos 48h de antecedência) e colocar dentro do bowl de punch (Obs: esta opção fará com que o punch fique mais diluído conforme as horas passam);
  • Servir o punch já diluído e sem gelo, e deixar que os convidados adicionem gelo direto em seus copos se quiserem.

Dito isso, no aperto, qualquer recipiente largo e limpo funciona. Se o punch estiver gostoso, ninguém vai julgar.

Caso opte por um punch quente, o ideal é servir em uma panela com tampa, que possa ser mantida aquecida no fogão. Um recipiente para fondue com uma pequena fonte de calor embaixo também funciona.

Os Condimentos

As especiarias/condimentos no punch são um tempero, tal qual o sal é para a comida; ele deve realçar ou fazer brilhar os sabores, mas nunca tomar a frente e dominar o paladar.

O mais tradicional é a noz-moscada, ralada fresca na superfície do punch logo antes de serví-lo. Dito isso, existem receitas com todo tipo de condimento, como canela, anis, cardamomo, etc; o que importa é que sejam frescos, moídos na hora.

O chá, no lugar da água, também é um excelente condimento. Importante notar que aqui “chá” se refere apenas às infusões preparadas com a Camelia sinensis, e não quaisquer infusões herbais.

O chá verde era mais usado que o chá preto, mas independente de qual use, lembre-se que essas bebidas trazem adstringência e cafeína, e podem exigir uma quantidade maior de açúcar, assim como maior parcimônia em seu consumo.

Embora na era de ouro do punch estes ainda não fossem uma opção, bitters (macerações concentradas e alcóolicas de especiarias e ervas) como Angostura ou Peychaud’s são aditivos interessantes, que podem trazer grande complexidade ao punch com apenas algumas gotas.

Modo de Preparo e Recipientes

Há quem diga que a ordem de preparo correta é essencial para o punch, devido ao tipo de ingrediente disponível. Se você vai adoçar seu punch com açúcar granulado, por exemplo, faz sentido adicionar primeiro parte da água ou do “fraco” antes dos outros ingredientes para facilitar e diluição.

Como eu prefiro preparar meu açúcar como um xarope ou sherbet, não preciso me preocupar com diluir grânulos no próprio bowl. Por isso, prefiro começar meu punch com os destilados e licores (fortes), seguido pelos cítricos (ácidos), açúcares (doces), e por fim com meu diluente (fracos).

Dessa forma consigo testar o sabor aos poucos, e prefiro precisar adicionar um pouco mais de dulçor ou diluição do que precisar adicionar mais destilados, ou espremer mais limões.

Nada te impede de começar com o açúcar e um pouco de água quente, fazendo seu xarope no próprio bowl de punch, e prosseguir com destilados e cítricos. Lembre-se que isso implicará em adicionar menos diluição no final.

Se você quiser ser tradicional, procure por um bowl de prata, porcelana, ou vidro lapidado para servir.

Para os copos, quaisquer taças pequenas e de corpo fundo, de 60 a 200ml de volume, funcionam bem. Xícaras de chá tem o volume ideal, e a vantagem de uma alça para que seus convidados não precisem ficar com as mãos geladas ou quentes demais.

Bebidas Comunais no Bar Moderno

Embora o punch tenha desaparecido da maior parte dos bares desde a ascensão do coquetel, alguns parentes distantes apareceram aqui e ali para nos lembrar que bebidas comunais ainda podem ser divertidas. Afinal, que brasileiro nunca viu quentão servido de grandes panelas em uma festa junina?

Outros exemplos surgiram com a coquetelaria Tiki, no início dos anos 1930. Coquetéis comunais servidos nos “scorpion bowls” (grandes recipientes decorados, servidos com canudos longos) e feitos para dividir com vários amigos fizeram sucesso, mas também não perduraram após a decaída de popularidade dos bares Tiki.

Desde 2007, porém, bares nova-iorquinos como o Death & Co e o The Dead Rabbit adicionaram suas versões de punches históricos aos seus cardápios com bastante sucesso (e com relatos de clientes entusiasmados caindo escada abaixo após beberem sozinhos um bowl inteiro).

Acredito que a onda crescente de coquetéis pre-batched (deixados prontos e engarrafados, para saírem mais rápido quando pedidos) tenha contribuído para isso. A lógica é a mesma: basta deixar o punch pronto, sem adicionar os sucos, e quando o pedido sair colocar os cítricos junto ao pre-batch no recipiente adequado.

Apesar do sucesso desses estabelecimentos em ressuscitar o estilo de bebida perdido, alguns desafios permanecem: para apreciar o punch é necessário tempo livre, e um grupo disposto a abrir mão de um pouco de individualidade de escolha afim de compartilhar essa experiência.

Eu, particularmente, nunca vi um bar no Brasil que tivesse a opção de um punch na carta; uma oportunidade perdida, ao meu ver, especialmente em estabelecimentos que já servem bebidas comunais como as jarras de clericot e sangria. Uma ponte possível para o retorno do punch aos menus pode ser os “punches de uso do bar”, mas estes ficarão para um outro post.

No próximo post, falarei de onde encontrar receitas de punch, e de meus experimentos com um clássico: o Fish House Punch.

Saúde!

Referências: MULDOON, S.; MCGARRY, J.; SCHAFFER, B. The Dead Rabbit Drinks Manual. [s.l.] Harvest, 2015. ; WONDRICH, D. Punch. [s.l.] Penguin, 2010.

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